Em tempos de confinamento, me permiti refletir sobre a maneira como a indústria de conteúdo infantil vem se remodelando para ajustar-se ao novo cenário de consumo de mídia. Trabalho como executivo de conteúdo há pouco mais de uma década, seis destes anos dedicados à estratégia de conteúdo infantil. Ao longo desse tempo, tive o prazer (e o desafio) de crescer profissionalmente em meio a um ambiente que se transformou radicalmente. Há dez anos, meu trabalho de curadoria resumia-se a assistir horas e horas de desenhos animados para sugerir uma lista de possíveis aquisições, esforço sempre combinado a uma profunda análise do comportamento de consumo do público e a uma boa dose de intuição. Fazer curadoria de conteúdo infantil é, e sempre será, um trabalho de antecipação de tendências, uma arriscada tentativa de adivinhar o futuro, sobretudo hoje, quando nossos ‘clientes’ – os nativos digitais da geração alpha – inverteram a relação ‘curador – espectador’, já que se tornaram, eles próprios, formadores de opinião, trendsetters e programadores do próprio tempo livre. Claro, estamos falando de uma época em que o Youtube e os serviços de streaming colaboram enormemente para a autonomia e o poder de decisão dos pequenos em relação ao que assistem
Desta maneira, a habilidade de um curador de conteúdo infantil precisou passar por uma fundamental atualização de abordagem: tornou-se decisivo que os curadores tenham acesso aos criadores e que, preferencialmente, estejam presentes desde o nascimento do storytelling. Em primeiro lugar, devido ao nível de exigência e complexidade das obras, a produção de uma série de animação pode demorar anos (ou mesmo décadas) desde a idealização até a sua disponibilidade para o público final. Como saber o que produzir e o que comprar para um público que ainda nem nasceu? Segundamente, graças à proliferação de serviços e plataformas dedicadas ao gênero, o panorama de direitos de conteúdo infantil se tornou uma verdadeira selva onde quem tem maior chance de sobrevivência é a fera que enxergar melhor, sobretudo no escuro e à longa distância. A época na qual assistia-se séries de animação financiadas e com data de lançamento para o mercado acabou. Atualmente, o trabalho do curador se diferencia cada vez mais pela capacidade de antecipação de etapas, ano após ano. Para garantir direitos exclusivos do próximo produto à altura de Ladybug, por exemplo, tornou-se fundamental que os curadores tenham acesso aos criadores e que, preferencialmente, estejam mutuamente associados desde o início do processo.
Por experiência pessoal, o caminho para uma curadoria mais assertiva tem sido a troca com pares em canais e produtos semelhantes, em especial com os colegas de outros territórios, onde não há competição pelos direitos, mas sim uma ampla colaboração e espaço de troca de impressões – no final, influenciamos uns aos outros e compartilhamos a adrenalina de apostar na próxima Peppa Pig (sim, já existe). Mais do que isso, essa rede de programadores, curadores e commissioning editors de vários territórios vem se tornando fundamental para viabilizar novos projetos de filmes e séries infantis, sobretudo de animação, que dependem cada vez mais de muitos parceiros apostando juntos na mesma ideia. É a forma como temos presenciado alguns
projetos saírem do papel recentemente. O último Kidscreen, em fevereiro passado, foi bem assim: presenciamos ou tivemos a chance de provocar ao menos duas parcerias que resultarão em projetos grandiosos, com potencial para alcançar telas do mundo inteiro.
Assim como o recente reposicionamento dos distribuidores de conteúdo, que passaram a encomendar produções e a participar de seu desenvolvimento criativo, é fundamental que programadores, sejam eles canais de TV ou plataformas de streaming, abandonem a postura tradicional de ir aos mercados simplesmente para comprar títulos. No caso da Unidade Infantil do Grupo Globo, estamos buscando nos envolver em novos projetos o quanto antes, pois nossa expertise de estar na ponta da cadeia produtiva, em contato com os espectadores e dados de consumo, além da posição privilegiada num mercado estratégico como o Brasil, nos credenciam a colaborar no desenvolvimento de propriedades intelectuais internacionalmente promissoras. Nos próximos três anos, temos o ambicioso objetivo de ter 2/3 da nossa programação contemplando títulos originais ou de aquisições, nos quais nos envolvemos tanto no financiamento quanto no desenvolvimento. Persistiremos focados em garantir o acesso a títulos competitivos da forma mais independente possível, buscando equilibrar qualidade e retorno de investimento em marcas consistentes, que são trabalhadas em um ecossistema que contemple todos os pontos de contato com as crianças. Se nossos esforços não estiverem focados, corremos o risco de ter de nos contentar com a janela que sobra, o que não contribui para a relevância de nossos canais e serviços, claro; além de limitar uma exploração ampla das marcas e agenciamento de produtos, por exemplo.
Em um contexto de altíssima competitividade, especialmente por (grandes) títulos infantis, é muito importante que os programadores de conteúdo tenham cada vez mais clareza de suas linhas editorias e uma estratégia de conteúdo bem definida. É o que nos permite direcionar o olhar para o horizonte de parcerias internacionais compatíveis, ou seja, com os mesmos objetivos de longo prazo, para financiar e coproduzir os projetos certos. Um exemplo disso estreia no Gloob no mês de abril. Power Players é uma coprodução internacional que envolveu a colaboração de cinco núcleos de desenvolvimento distintos: a Zag Heroez (Miraculous – As Aventuras de Ladybug), criadores da série, juntamente com os roteiristas da Man of Action (Ben 10, Big Hero 6), On Kids & Family (produtores de Miraculous) e as equipes de conteúdo dos canais Cartoon Network (onde o título é exibido em outros territórios fora do Brasil) e Gloob. O título é fruto de um envolvimento desde o estágio inicial de desenvolvimento, a partir de uma curadoria de conteúdo que certamente nos trará bons resultados.
A distribuição de conteúdo infantil mudou significativamente nos últimos 10 anos e a maneira como hoje pesquisamos, financiamos e nos envolvemos no processo criativo precisa responder à demanda tão exigente e mutável dos nossos pequenos espectadores. Em tempos de ampla disponibilidade de serviços e plataformas dedicadas ao segmento, a função do curador é colocada em evidência quando capaz de prever futuras tendências e enxergar além do habitual.
Por Luiz Filipe Figueira, gerente de programação e estratégia de conteúdo da Unidade Infantil do Grupo Globo, formado pelos canais Gloob e Gloobinho