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Uma das práticas mais comuns dentro do mundo das marcas é a concorrência, na qual clientes, geralmente empresas de médio e grande porte, promovem uma competição não remunerada entre escritórios de design e agências de publicidade com o pretexto de ser um processo de seleção. No fim, muitos profissionais acabam trabalhando exaustivamente com prazos curtos, sem receber pelo esforço, e com grandes chances de não serem escolhidos pelos clientes.

Quando encararam essa realidade de perto no ano passado, os sócios do escritório de design Porto Rocha, Leo Porto e Felipe Rocha, compartilharam suas frustrações sobre esse costume considerado abusivo com os profissionais da indústria. O resultado? Não apenas eles, mas outros profissionais também estavam descontentes com a concorrência gratuita.

A partir disso, Leo e Felipe decidiram criar um movimento para abolir essa prática, dando luz ao manifesto ‘No Free Pitches’ (em tradução livre, ‘Sem Ideias de Graça’). Contando com mais de 5 mil assinaturas de profissionais de diversas empresas, como Google e Spotify, esse manifesto ressalta que a concorrência gratuita, além de desvalorizar o trabalhador, dificulta o processo criativo das ideias, que podem não ser selecionadas ou, no pior dos casos, até copiadas pelas empresas.

Nesse sentido, o manifesto traz mais informações explicando os problemas acerca do pitching gratuito:

  1. Pitching é um sintoma de um sistema quebrado.
  2. O pitch é extremamente demorado.
  3. O pitch exige prazos irracionais que impedem um trabalho significativo.
  4. Pitching sobrecarrega a saúde mental e a motivação da equipe.
  5. O pitch é político: quem você conhece é muitas vezes tão importante quanto o que você apresenta.
  6. O pitch coloca suas ideias em risco de serem usadas, mesmo que não sejam selecionadas.
  7. O pitch exclui muitos que não têm os recursos para participar.
  8. O pitch cria um campo de jogo injusto entre grandes e pequenos estúdios.
  9. Pitching não é a única opção quando se trata de avaliar um parceiro criativo.
  10. Pitch sem pagamento é uma prática desatualizada que não pertence mais à nossa indústria.

Esse posicionamento não anula a importância do pitch tanto para o escritório quanto para o cliente durante o processo de prospecção de um parceiro em potencial, mas os sócios da Porto Rocha argumentam que, por se tratar de uma etapa tão importante, os profissionais deveriam ser devidamente pagos.

Durante a captação de assinaturas para o “No Free Pitching”, Felipe e Leo entraram em contato com a designer e sócia do estúdio Colletivo, Vanessa Queiroz, uma antiga parceira que parou de participar de concorrências há 12 anos. Compartilhando do mesmo sentimento, ela prontamente assinou e fomentou ainda mais o manifesto, realizando uma reunião com a Associação Brasileira de Empresas de Design (ABEDesign), que protege os escritórios associados de participarem de concorrências não remuneradas.

“Eles [os clientes] lançavam a concorrência, nós cuidávamos da parte da criação e a que eles mais gostassem, eles levavam para dentro. Como o valor de mídia é o que carregava as agências de publicidade, enquanto a parte de criação, redação e design era visto como produção, virou um ‘compre a mídia e ganhe a criação’, virando um modus operandi. As agências brigavam entre si e todos trabalhavam de graça. Nesse esquema, os privilegiados participavam numa boa em detrimento das pessoas que trabalhavam de madrugada e fim de semana”, comentou a sócia do Colletivo em entrevista ao Adnews.

Vanessa Queiroz, designer e sócia do Colletivo Design (Foto: Acervo Pessoal)

Vanessa Queiroz, designer e sócia do Colletivo Design (Foto: Acervo Pessoal)

Com o tempo, os escritórios de design amadureceram e perceberam que esse movimento seria negativo para eles mesmos, pois as grandes agências já eram as fortes candidatas a ganharem a concorrência, enquanto os outros participantes investiam muito, mas com pouco ou nenhum retorno.

Vanessa comentou que isso a fez tomar a decisão de não participar de concorrências, nem por meio de agências de publicidade, às quais ela parou de atender, nem via cliente final. Tal atitude, embora positiva para os escritórios de design que buscam mudar esse cenário que expõe os profissionais a situações de trabalho exaustivas, é negativa porque muitos clientes também parem de chamar esses escritórios para trabalhos pagos.

“A concorrência piora o cotidiano de trabalho por não entrar na pauta normal. O profissional tem o trabalho dele e ainda precisa lidar com essa demanda extra. Algumas agências sabem desse movimento, mas não se manifestam para não criar problemas com os grandes clientes”, disse Vanessa.

Paulo Loeb, CEO da Fbiz (Foto: Acervo Pessoal)

Paulo Loeb, CEO da Fbiz (Foto: Acervo Pessoal)

Partindo de um ponto de vista semelhante aos dos sócios da Porto Rocha e da sócia do Colletivo, o CEO da Fbiz, Paulo Loeb, compartilhou em seu perfil oficial no LinkedIn, com tom de desabafo, um texto sobre como o trabalho não remunerado afeta os profissionais de diversas formas. Além disso, Loeb também escreveu sobre uma experiência positiva em uma concorrência que havia participado na época com a Melitta, destacando as principais práticas que, segundo ele, deveriam ser adotadas pelas demais empresas.

Quando questionado sobre seu posicionamento acerca do manifesto, o CEO comentou que a remuneração pela concorrência é uma prática importante, mas é apenas uma das variáveis que devem ser melhoradas. De acordo com Loeb, a presença do C-Level (chefes) nas reuniões, feedbacks constantes e a valorização da presença física são outros aspectos importantes que devem ser considerados no aprimoramento da relação entre escritórios, agências e clientes.

O executivo ressaltou outro obstáculo para essa situação, sendo a falta de colaboração entre as próprias agências quando se trata de concorrências.

“Existe uma dificuldade maior de colaboração entre as agências por conta de algo conhecido como ‘O Dilema do Prisioneiro’, onde há dois suspeitos de um crime. Se um confessar o crime, somente o comparsa dele irá preso e vice-versa, mas se ambos confessarem, os dois serão presos. Trazendo isso para a realidade, caso as agências tivessem um acordo de melhores práticas, poderia acontecer de uma furar isso, por saber que as demais não iriam participar dessa forma, e se aproveitar dessa vantagem para ganhar a concorrência”, disse o CEO da Fbiz.

 

E agora?

A partir dos pareceres dos entrevistados, mesmo que exista um descontentamento geral dos designers e publicitários sobre as exigências impostas pelos clientes, é evidente a falta de um consenso dentro do setor criativo sobre quais mudanças se fazem necessárias para o atual momento da indústria.

A regulamentação e o pagamento adequado das concorrências, o posicionamento das grandes agências em prol de uma união e a conscientização das marcas sobre práticas justas e que melhor se adequem aos trabalhadores são apenas alguns dos requisitos que poderiam remodelar essa relação de trabalho debilitada.

Porém, enquanto essa reformulação não acontece, movimentos como o ‘No Free Pitches’ e o posicionamento de instituições e CEOs de agências iluminam cada vez mais essa discussão que, por muito tempo, foi encarada de forma velada.

 

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