A inteligência artificial é uma ferramenta tecnológica que já está inserida no contexto social. Compramos, vendemos, nos divertimos, estabelecemos relacionamentos afetivos e trocamos informações por meio de sistemas que possuem módulos de IA integrados.
Esses sistemas que analisam dados e decidem, ou seja, sistemas de “inteligência” artificial, são bastante comuns no ambiente virtual e nas redes sociais, que são os espaços de convivência e compras mais comuns hoje, especialmente num contexto de pandemia e isolamento social.
Alguns desses sistemas interferem diretamente nas relações de consumo. Dentre eles podemos citar os mecanismos buscas, que podem direcioná-las, e os DRM´s, os Digital Rights Managments, também conhecidos como “gestores digitais de direitos autorais” ou “medidas de controle tecnológico”.
Se você pensa que não os conhece basta tentar incluir uma música “pirata” em seu smartphone ou tentar incluir um vídeo com direitos autorais no YouTube. Ou, noutro sentido, basta tentar exportar esses conteúdos.
De forma sintética, o DRM é um software que sustenta um sistema de inteligência artificial capaz de decidir e implementar sua decisão sobre que obra, ou que parte dela, pode ou não ser acessada em determinado aparelho ou ambiente virtual.
Esses sistemas de “gestão” ou “restrição” acabam por atuar de certa maneira como um Juiz-robô, que não só decide acerca dos nossos direitos como também impõe suas decisões sem qualquer margem para descumprimento.
O tema é interessante porque o DRM garante muita eficiência na gestão de direitos na internet, em gadgets e computadores, mas, ao mesmo tempo, pode desencadear problemas de transparência, de equilíbrio contratual e privacidade.
Não se pode desconsiderar ainda o impacto dos DRM’s ao limitarem indiscriminadamente o uso de obras intelectuais, e, sequer permitirem a utilização (ou implementação) de exceções legais. Isso resulta na anulação, concreta, da possibilidade de “uso justo” (fair use) das obras.
No caso brasileiro, por exemplo, a Lei de Direitos Autorais é de 1999, quando a internet ainda estava no início e o Iphone ainda não era uma realidade. Por isso, é necessário discernir se a restrição imposta agora por DRM atende aos mesmos parâmetros da legislação brasileira.
A título de exemplo, nossa Lei 9.610/1999, prevê que é permitida “a representação teatral e a execução musical […] para fins exclusivamente didáticos, nos estabelecimentos de ensino, não havendo em qualquer caso intuito de lucro” (Art. 46, VI). Diante dessa regra, os DRM´s de smartphones de alunos e o YouTube (aqui citado a título de exemplo), apenas devem permitir no Brasil essa reprodução. Mas como isso seria “gerenciado” pela inteligência artificial? Quem definiria o que é “fins exclusivamente didáticos” e como seria interpretada a ausência de intuito de lucro? Quem tem o direito de interpretar se essa regra se aplica aos vídeos?
Em Portugal, por exemplo, a Lei 36/2017 modificou o Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos para incluir a seguinte regra: “Para os efeitos do disposto no número anterior, entende-se por «medidas de caráter tecnológico» toda a técnica, dispositivo ou componente que, no decurso do seu funcionamento normal, se destinem a impedir ou restringir atos relativos a obras, prestações e produções protegidas, que não sejam utilizações livres…” (Art. 217º, 2). A parte final do artigo, sobre “utilizações livres”, trata exatamente da interface entre os DRM e o uso justo, assim definido em lei.
No âmbito mais amplo da Comunidade Européia, o Art. 6º, seção 4, da Diretiva 2001/29/CE, afirma que “…os Estados-Membros tomarão as medidas adequadas para assegurar que os titulares de direitos coloquem à disposição dos beneficiários de excepções ou limitações previstas na legislação nacional…” e essa regra se aplica aos “mecanismos de controle tecnológico” mencionados na seção 3 do mesmo artigo.
Aqui no Brasil não parece haver uma preocupação na construção de um tratamento jurídico do DRM, aliás, a situação pode ser estendida a boa parte do mundo todo, pois os mecanismos de controle tecnológico podem ser programados em um país e aplicados globalmente.
Aqui, em relação a proteção dos direitos autorais, o Marco Civil da Internet faz uma ressalva importante a respeito a liberdade de expressão e dos direitos fundamentais (Art, 19, § 2º, da Lei 12.965/2014), mas nada trata das limitações já previstas na Lei de 1999. Muito menos a respeito dos DRM´s. Aparentemente, esta norma tão moderna não é inovadora o bastante para tratar desse tema.
Por isso, enfim, é necessário pensar sobre inteligência artificial e direito. Parar de imaginar como serão os juízes-robôs do futuro e regular os que já existem.
O desafio é enorme e certamente passa por questões técnicas de ciência de dados e de computação, mas é permeado também pelo desafio jurídico de regular – rápido e de maneira eficiente – a inteligência artificial.
Por Edgar Jacobs, advogado e coordenador do projeto de Direito da SKEMA Business School
Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2007), Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (2000) e graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (1992). É sócio do escritório Edgar Gastón Jacobs e advogados associados, diretor presidente da Edgar Jacobs Consultoria e Ensino. Na academia, é professor titular da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e foi professor adjunto da Universidade Federal de Ouro Preto. Possui livro na área de Direito Educacional e publicações em jornais e periódicos nacionais e internacionais na área de direito educacional, direito e economia, direito da propriedade, direito do consumidor e regulação. Além disso, atua como advogado e é membro de comissões na Ordem dos Advogados do Brasil em Minas Gerais.